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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Razanique e o livro de magia - III Capítulo

Capítulo III

A sala do mestre



Micogito empurrou lentamente a porta da grande biblioteca. Mais ao fundo, sentado atrás de uma pilha de livros, bem à vontade, o senhor Gronfo apenas ergueu os olhos por cima dos óculos e sorriu sem mostrar nenhum dente.
— Finalmente, finalmente, finalmente! — ele disse, enquanto descruzava os pés retirando-os de cima da mesa; fez um gesto com uma das mãos convidando-o a entrar.
O pequeno razani deu um longo suspiro, tomou coragem e entrou.
— Com licença, senhor inspetor...
O velho levantou-se sem dizer nada, caminhou em direção ao menino e estendeu sua enorme mão na direção dele. Micogito pareceu não entender o que ele queria.
— Vamos! O livro, o livro, o livro! — esbravejou secamente. — Entregue-me agora!
— E-eu não posso... — respondeu tremendo.
O inspetor arregalou os olhos, furioso.
— O quê? O quê? O quê?
— Eu não posso, senhor Gronfo. A-acabei de deixá-lo com o professor Uioio — mentiu sem saber o motivo.
O velho franziu a testa e pareceu não acreditar em Micogito.
— Aquele intrometido! — falou consigo próprio, pensou por alguns segundos e enfim decidiu-se:
— Siga-me! Primeiro você terá o que merece, o que merece, o que merece, depois... He, he, he...
Ele caminhou em direção às centenas de prateleiras. Micogito o seguiu; passou pela mesa na qual o encontrara e estranhou tamanha bagunça.
No silêncio da biblioteca, as únicas coisas que se ouviam eram os passos do inspetor e do menino e o tilintar das chaves na cintura do velho. Passaram por muitas estantes repletas de livros de todas as cores e tamanhos. Ao chegarem à última delas, que ficava encostada na parede do fundo, o senhor Gronfo parou, virou a cabeça para trás, olhou o garoto e sorriu novamente. Depois puxou um livro velho e muito grande — o maior que Micogito já vira — que estava na prateleira mais baixa. No mesmo instante, a pesada estante começou a se mover lentamente para o lado, fazendo surgir um longo corredor escuro.
Micogito observava tudo praticamente sem respirar, estava nervoso com a situação. Quando a estante parou, o inspetor imediatamente entrou na escuridão da bungara mitiaca e ele se viu obrigado a acompanhá-lo. À medida que andavam, chamas azuis iam se acendendo sozinhas nas paredes de pedras cinzentas; depois que os dois passavam por elas, apagavam-se imediatamente. O caminho era estreito, com algumas curvas, e em declive, tinha uma temperatura bem agradável e um delicioso aroma de bolo saído do forno. Apesar da sensação boa, o menino não parecia nada animado, a cada passo sentia um frio no estômago; sempre fora um bom aluno e aquela era a primeira vez que fora “convidado a visitar” a sala do grande mestre. O que sabia a respeito daquele lugar era apenas de “ouvir falar”, ao contrário de alunos mais travessos e indisciplinados que conheciam aquilo tudo de cor, até mesmo de olhos fechados.
De repente, o velho parou. A sua frente uma imensa porta se iluminou. Micogito pôde ler o que estava escrito entalhado na madeira: “Grasquim Vontergrize, grande mestre e diretor da Escola Preparatória de Magos de Razanique”. O Gronfo mais uma vez virou-se e sorriu — parecia estar muito satisfeito com tudo aquilo; em seguida, segurou uma grande argola de bronze que surgira do nada bem no meio da porta e a bateu com força na madeira várias vezes.
Num passe de mágica a porta desapareceu deixando à mostra a sala do grande mestre. Era um lugar fantástico, impossível de ser descrito ou imaginado, tudo brilhava intensamente e podia se notar magia em cada detalhe. Inexplicavelmente o sol parecia brilhar lá dentro, havia belos pássaros, muitas flores coloridas e algumas plumas flutuando no ar. Ruídos de água e ventos soavam como uma música suave. O ar era fresco e o perfume das flores se espalhava pelo lugar. Micogito arregalou os olhos o mais que podia quando viu Grasquim sentado junto a sua mesa oval. O velho mago de cabelos e barbas dourados que iam quase até o chão estava com a aparência serena de sempre. Tinha um sorriso bastante amigável e seus grandes olhos amarelos como ouro brilhavam e estavam fixos no pequeno garoto, que não piscava, tampouco se movia. Atrás do mago uma parede alta de pedras azuladas reluzia como se estivesse cravejada de diamantes.
Grasquim fez um discreto sinal com a cabeça pedindo que entrassem. Imediatamente o inspetor Gronfo obedeceu, cumprimentou seu mestre abaixando respeitosamente a cabeça e quando olhou para os lados não encontrou Micogito. Virou-se para trás e achou-o parado no mesmo lugar; com um rápido puxão, tratou de trazê-lo para dentro da sala. A porta reapareceu em seu lugar enquanto o menino — boquiaberto — movia os olhos para cada canto, fascinado com a beleza do local. O silêncio foi enfim quebrado pelo velho mestre:
— Gronfo — chamou com a voz rouca e grossa.
— Sim, sim, sim! — apresentou-se prontamente o inspetor cheio de si.
— Com tanta força, na porta, não deve bater.
O senhor Gronfo corou e não conseguiu disfarçar seu embaraço; nem poderia, pois torcera o nariz e aquele era um nariz grande demais para passar despercebido.
Micogito sorriu consigo, agora muito mais calmo.
— Afastar-se é o que vai fazer — ordenou o mestre Grasquim ao inspetor. Depois se dirigiu ao menino com a voz suave: — Até aqui, sem medo, deve vir.
O velho Gronfo saiu para o lado com cara de tacho, enquanto Micogito aproximava-se da mesa do mestre ainda meio receoso.
Grasquim coçou a barba com os olhos grudados no menino, como não dizia nada, Micogito precisava falar...
— Si-sinto muito, diretor — disse com a voz embargada e a cabeça baixa. Quase não pôde ser ouvido.
— Que sente, eu sei.
— Eu não deveria ter voado, mas estava atrasado para a aula da professora Vasda. Foi sem querer. Estou aqui para receber o meu castigo, seja qual for.
— Castigo... — sussurrou o mago.
O inspetor esboçou um sorriso.
— Sim, mestre, errei e por isso mereço um castigo.
— Castigo... — sussurrou novamente enquanto batia levemente os dedos na mesa como se pensasse no que fazer.
O senhor Gronfo quase não conseguia mais se conter, estava eufórico com todo aquele suspense, tinha muitas sugestões para dar, bastaria apenas que Grasquim lhe desse uma única chance de falar. Mas o grande mago sabia exatamente o que fazer.
— Castigo algum você receberá — sentenciou.
Ao ouvir aquilo, o inspetor quase enlouqueceu, abriu muito os olhos, inconformado, cerrou os punhos e mordeu a língua para não protestar. Estava atônito. Micogito, por sua vez, nem acreditou no que ouvira, também se mostrou surpreso, achando que entendera errado.
O mestre Grasquim levantou-se calmamente, deixando aparecer sua longa veste branca cintilante. De maneira solene, estendeu a mão comprida e enrugada para o menino, em seu polegar havia um grande anel dourado com cinco pedras vermelhas.
— A mim, deve entregá-lo, agora.
Micogito sentiu um nó na garganta. Pensou em argumentar, se fazer de desentendido, mas sabia muito bem o que o mestre queria: o livro de magia de seu pai.
Ficaram parados por um instante. Apenas os olhos do Gronfo se moviam velozes mirando ora o menino, ora o velho mago, ora o peleco, ora o velho nablim.
Mesmo contra sua vontade, ele puxou o pequeno livro de dentro da manga da blusa. O senhor inspetor arregalou ainda mais os olhos agora fixos no grande tesouro de Micogito. Encarou o garoto com um olhar raivoso acusando-o de mentiroso.
O menino pareceu estar triste, fechou os olhos com força, deu um suspiro profundo e só então entregou o livro de nablia ao seu mestre.
— Paciente é o que deve ser. Só deverá lê-lo quando mago se tornar — ele disse ao menino que apenas abaixou a cabeça. — Bem guardado seu livro ficará no cofre secreto. Seu, muito em breve, será.
— Mas tenho só dez anos — respondeu num impulso.
O mestre sorriu. Sabia que, para o garoto, ainda faltava muito tempo. Aos quinze, quando completasse os estudos na Escola Preparatória, se tornaria um mago de verdade e receberia então, das mãos do mestre, um livro de magia igual àquele.
— Adequado é o tempo, se bem aproveitado ele é — disse com a voz serena; costumava falar pouco e nem por isso deixava de ser compreendido por quem quer que fosse.
Micogito entendeu que não deveria ter pressa de crescer. Ainda era apenas um menino e deveria agir como tal. Balançou a cabeça aceitando as sábias palavras do velho Grasquim.
— Ao lugar dele, deverá levá-lo — ordenou entregando o livro de magia ao inspetor Gronfo.
— Sim, sim, sim, badu! — respondeu com entusiasmo. Segurou-o com as duas mãos. O livro de magia se iluminou e tornou-se muito pesado forçando o homem a dobrar-se para frente, depois voltou ao normal.
O mestre franziu a testa e manteve os olhos grudados no inspetor como se o repreendesse por toda aquela euforia demonstrada.
— Vamos, garoto, garoto, garoto! Já tomou muito tempo, muito tempo, muito tempo do diretor.
Micogito obedeceu prontamente e virou-se para sair. Deu alguns passos e parou. Gronfo tratou de empurrá-lo:
 — Vamos! Andando, andando, andando...
— Gronfo!
O inspetor estremeceu:
— Si-sim, mestre, mestre, mestre?
Grasquim fez sinal para que ele se afastasse. Olhou diretamente para Micogito e falou:
— O que quer perguntar, perguntar você deve.
O garoto ficou admirado, pois realmente tinha algo que queria muito saber. Aproximou-se do mestre novamente e perguntou com a voz muito baixa:
— Alguma novidade sobre o meu pai?
O velho Grasquim balançou a cabeça negativamente.
— Paciente é o que deve ser. Achado será aquilo que vive.
— Agora vamos, vamos, vamos! — puxou-o o Gronfo.
O mago manteve os olhos fixos no menino e no inspetor enquanto se afastavam. Tinha agora as sobrancelhas bem em pé, demonstrando grande preocupação.
— Ande mais depressa! — ordenou com impaciência o velho Gronfo, empurrando Micogito. — Vamos logo! Vamos!
Sem dizer nada, o garoto apenas apressou seus passos, apesar de já estar perdendo a paciência com o inspetor. Sabia que ele não gostava dos alunos, mas nunca o vira com tanto mau-humor e, muito menos, tão mal-educado. Logo chegaram à biblioteca. Assim que passaram pela estante, o Gronfo deu-lhe um forte empurrão.
— Saia da minha frente!
Em passos acelerados, o velho dirigiu-se até a porta. Parecia ter muita pressa. Abriu-a com violência e de repente parou, virou-se para Micogito, sorriu com malícia, levantou o livro de magia para o alto e o balançou. Tinha um olhar diferente, medonho, assustador.
— Você o quer?
Micogito franziu a testa sem entender nada.
— Rá, rá, rá! — riu com grande ironia. — Finalmente é meu e não lhe dou! — completou em tom de galhofa antes de virar-se e sair batendo a porta com força.
O menino rapidamente correu até a porta, abriu-a, mas não viu ninguém, o senhor Gronfo já havia desaparecido. Por um momento ele sentiu uma grande raiva do inspetor, ou melhor, do comportamento dele. Como é que ele conseguia ser tão desagradável? Permaneceu ali parado pensando para onde ele poderia ter ido. A montola era cheia de salas secretas que somente Grasquim e o Gronfo sabiam onde ficavam e como fazer para  chegar até elas. E tudo que o menino queria descobrir naquela hora era onde seria o tal cofre secreto onde o inspetor guardaria o seu grande tesouro, o livro de magia que pertencera ao seu pai. Só tornaria a ver um livro como aquele no dia em que se tornasse um verdadeiro mago.
Fechou os olhos e disse baixinho para si mesmo: “Se eu pudesse encontrar o meu pai...”

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