Total de visualizações de página

quinta-feira, 31 de março de 2011

Chama Acesa


- Seu troco! Obrigada e volte sempre!
- Puxa, que distração a minha! Vim para comprar uma vela, acabei comprando metade do supermercado e já estava esquecendo a vela… Vou buscá-la…
- Fique à vontade!
- Deixe-me ver… Acho melhor levar um maço inteiro. O que você acha, mocinha?
- Eu?!
- Deixe pra lá! Já decidi! Vou levar uma vela de sete dias! Ponha na minha conta!
***

Vinte minutos depois:
- Viu só, meu Santinho querido!? Aqui está a vela que eu lhe prometera. Vou acender… Pronto! Hã?? Ah, eu não havia prometido nada?! Pois estou prometendo agora… Ai, meu Santinho, faz o Maurão se apaixonar por mim… Como “que Maurão”?! O Maurão… Aquele “morenaço” de dois metros… Ah, eu sabia que o Senhor se lembraria! Eu preciso muito da sua ajuda para conquistar o Maurão… Eu jurei pra Samanta que roubaria o Maurão dela… Sabe como é... Jurar em falso é pecado e eu detesto o calor… Não me acostumaria com o inferno… O quê? Ah, roubar também é pecado?! Tem razão, Santinho, mas ninguém é de ferro, não é mesmo?! Ah, me ajuda, vá… Não lhe custa nada…
Dlim, dlom…
- Essa não! Eu não vou parar agora! E aí, Santinho, vai ou não vai me ajudar a conquistar o Maurão? Ainda não sabe??
Dlim, dlom…
- Mas que coisa! Esta campainha outra vez! Dá licença, Santinho, que eu volto já… Quem é?
- Sou eu!
- Eu quem?
- Como “quem”?! O Maurão!
- O Maurão?! Ah, eu sabia, Santinho! O Senhor não iria me abandonar… Que eficiência, hem!? Gostei de ver! Vou apagar a vela para economizar... Digo... Pra ele não perceber nada, tá!?
***

Três meses depois:
- O que está acontecendo aqui?
- Ô, Maurão, então você não se lembra?
- Não me lembro do quê? Por acaso esqueci de pagar a conta da luz?
- Não, Maurão, é um jantar à luz de velas…
- Velas?! Mas eu só estou vendo uma única vela…
- É um jantar à luz de vela, pronto!
- Pra quê, hem?
- Como “pra quê”?! Pra comemorar nossos dois meses de casados…
- Eu sabia… Eu sabia! Estava apenas lhe testando.
- Sei…
- E precisa de toda esta frescura? Nem cozinhar direito você sabe!
- Pois saiba que meu jantar à luz de vela não é nenhuma frescura! Passei a tarde toda no fogão.
- Que perda de tempo…
- Como assim?
- Tanto tempo pra preparar “isto”! Ah, que falta faz a minha mãe… Aquela sim sabe preparar um jantar como ninguém… Com vela ou sem vela!
- Maurão, por que você não se casou com a sua mãe, então?
- Porque ela já era casada com o meu pai…
- Coma e cale a boca, antes que eu faça você engolir a vela!
- Talvez a vela tenha um gosto melhor do que “isto” que você chama de jantar… Por falar em vela, não tinha uma vela melhor, não?
- Não, Maurão! E acabou o jantar, e acabou a luz da vela!
- Ei, aonde você vai com a comida?
- Vá comer na casa da bruaca velha da sua mãe!
- Tá bem… Mas veja se pelo menos você acende a luz porque eu não estou conseguindo achar a chave do carro.
***

Quatro meses depois:
- Parabéns pra você… Nesta data querida… E pro Maurão: nada?! Tudo!! Então como é que é? É pique! É pique! É pique! É pique; é pique; é pique! Viva o Mau… Que foi, hem, Maurão? Não gostou do bolo que eu fiz?
- Gostei, né... Já que não tem coisa melhor…
Ela faz cara de “Então?”. Ele parece que entende a cara dela:
- Então que, até hoje, meu aniversário sempre teve um bolo da minha mãe…
Ela faz cara de “E daí?”. Ele parece que novamente entende a cara dela:
- E daí que sempre teve pelo menos uma vela no bolo… Você entende, não é!?
Ela faz primeiro a cara de “Mas que bobalhão… Então era isso…” e depois faz a cara de “Vou dar um jeitinho nisso”. Ele entende e faz primeiro a cara de “Bobalhão é a…!”, e depois a cara de “O que será que ela vai fazer?”.
- Pronto, Maurão! Aqui tem uma vela pra você! Parabéns pro Maurão; nesta data queri… O que foi agora? Que cara é essa?
- Puxa vida! Você nem pra comprar uma vela pra comemorar o aniversário do seu marido… Esta vela está usada! Aliás, é a segunda vez…
- Terceira!
- Tem certeza?
- Absoluta!
- Que seja! É a terceira vez que você acende esta mesma vela… Assim não dá… Minha mãe nunca deixou…
- Acho melhor você parar de falar na bruaca velha da sua mãe e apagar logo esta droga de vela, que eu estou perdendo minha paciência com você!
- Está bem… Está bem… Mas, pelo menos, veja se não desafina na hora de cantar parabéns!
- Apague a vela logo, antes que eu enfie o bolo na sua cara!
***

Seis meses depois:
- O que vamos comemorar hoje?
- Por que, Maurão?
- Está tudo escuro. Não consigo ver nada! Não é outro daqueles seus jantares à luz de vela, é?
- Não! Desta vez você esqueceu-se de pagar a conta da luz!
- Tem certeza?
- Tenho…
- Mas que coisa, não!?
- Não fique aí parado, Maurão! A vela está na gaveta da cômoda.
- E?
- Vá pegá-la!
- Mas eu não consigo ver nada…
- Azar é o seu! Não se esqueceu de pagar a conta?! Agora procure a vela…
- Tudo eu… Tudo eu! Mas que droga… Onde está aquela maldita vela? Minha mãe sempre anda com uma vela no bolso…
- Maurão, eu não sou a bruaca velha da sua mãe…
- Eu sei! Que pena… Ah! Achei a maldita vela!
- Agora vá pegar o fósforo!
- Você deve estar brincando…
- Está lá na cozinha!
- Mas eu mal conheço a cozinha!
- E eu com isso?
- Maldição! Ai! Tum… Ui! Achei! Ah, agora está bem melhor…
- Por que você não trouxe a caixa de fósforos?
- Porque eu usei o último palito!
- Quer dizer que se a vela apagar, não teremos como acendê-la novamente?
- Exato! A… A… A…
- Não, Maurão! Não faça iss…
- Atchimmm!!!
- Eu sabia que você iria aprontar das suas, Maurão…
- Eu sou alérgico a este seu perfume barato!
- Foi você quem me deu esse perfume de presente, lembra?! E agora, Maurão?
- A culpa é toda sua… Minha mãe nunca deixou faltar fósforos em casa.
- Sabe, Maurão, eu estava pensando… Você tem muita sorte por eu não estar enxergando absolutamente nada.
- Ah, é?! Por quê?
- Porque senão eu iria agora mesmo lhe quebrar um vaso nesta sua cabeça estúpida!
- Ah…
***

Oito meses depois:
- Quer fazer a gentileza de sair de cima do meu pé?
- Esse aí é o seu pé?
- Claro, seu imbecil!
- Ah, eu pensei que fosse o tapete…
- Pare de falar e procure uma vela em alguma gaveta!
- Ué, não viemos roubar dinheiro e jóias?
- Viemos, imbecil! Mas já que você fez o favor de se esquecer de trazer a lanterna, precisamos de uma vela pra poder ver alguma coisa.
- Ah, bom! Você é esperto mesmo…
- Agora procure! Vá…
- Cicatriz?
- O que foi desta vez, imbecil?
- Não estou vendo nada…
- Grande novidade!
- Posso acender a luz pra procurar a tal vela?
- Claro que não, imbecil!
- Ora, e por que não?
- Porque eu sou alérgico à luz elétrica, imbecil!
- Puxa! Amigos há tanto tempo e só agora você me fala isso…
- Quer ficar quieto e procurar a maldita vela?

- Maurão?
- Hum…
- Ô, Maurão! Não tá ouvindo?
- Hum?
- Tem alguém na sala…
- Hum…
- Quer tirar essa sua cara de palerma do travesseiro e prestar atenção?! E se for um ladrão?
- Hum?? O quê??
- Psiu! Fale baixo! Um ladrão…
- Você não está querendo que eu vá até lá, não é?! Minha mãe…
- Pode deixar, panaca! Eu vou!
- Hum...

- Que droga de marido eu fui arru...? Mas o que significa isto aqui?
- Xi, Cicatriz! Ela acendeu a luz!
- Quieto, imbecil! Aí, dona, isto aqui é um assalto! Uma palavra e eu meto bala!
- Posso dizer só uma coisa?
- O que foi, dona?
- Já que acendi a luz, que tal você apagar a minha vela?
- Tem razão, dona!
- Mas e sua alergia, Cicatriz? Ela acendeu a luz...
- Já mandei você ficar quieto, imbecil! Mais uma palavra, dona, e eu meto bala!
- Mas o que está acontecendo aí? Por que você não vem dormir e pára com tanto barulho? Amanhã eu tenho que acordar cedo e…
- Psiuuuu… Maurão!
- Psiu, por quê? Será que eu não posso falar nem na minha própria casa?! Mas em que mundo nós esta…
- Aí, amigo, isto é um assalto! Mais uma palavra e eu meto bala!
- AAAAAAH! Socoooorro! Mamãe! Polí…
Pum!
***

Cinco horas depois:
(Suspiro…). (Outro suspiro…). (Mais um suspiro…). “O Maurão tinha que abrir a boca?! Pobre, Maurão… Pobre da bruaca velha da mãe do Maurão… Pobre de mim…” (Suspiro outra vez…). “Espere aí! Eu nem amava mais aquele panaca mesmo… Estou livre! Livre! Livre… Que maravilha! Melhor eu ir ao velório, senão o que as pessoas poderão pensar de mim?! Onde está mesmo a minha vela? Ah, aqui está ela! A Samanta vai morrer de inveja quando me vir ao lado do caixão do Maurão com uma vela na mão!”
No velório:
“Ah… Olhe só o Maurão com a mesma cara de palerma de sempre… Aquele sorriso bobo… E eu aqui queimando minha vela à toa com ele! Que desperdício! Ei! O que será de mim se minha vela acabar?! Ainda faltam três centímetros e meio para derreter… Eu ainda poderia acendê-la pela... Pela... Deixe-me ver... Pela sétima vez! Este pedacinho é suficiente para conversar com meu Santinho, afinal, eu não resisto ao charme do Pedrão… Acho que ninguém vai perceber se eu apagar a vela agora… É um, é dois e é três:”
- Fuuuuuuu…

terça-feira, 22 de março de 2011

O que nos falta...

Imaginação

- Hum… Finalmente a hora mais esperada do dia! Tudo está perfeito! Hum… Que aroma incrível! Que venha o meu jantar! Mal posso esperar para saber qual o menu… Magnífico, aí vem o garçom todo elegante, flutuando em passos leves, sorrindo amigavelmente, trazendo a minha deliciosa refeição. Boa noite, nobre rapaz! Deixe-a aqui! Assim está ótimo, muito obrigado, senhor! Oh, não… Não preciso de mais nada, está tudo muito bom, agradeço… Ah, sim, qualquer coisa que precise, não hesitarei em chamá-lo… Até logo… Hum… Que maravilhosa surpresa: arroz, feijão, purê de batatas, filé mignon, salada mista! Que banquete! O que mais um cavalheiro como eu poderia querer?! Comida saudável, quente, caseira… Isto me faz lembrar mamãe… Arroz soltinho, feijão muito bem temperado, purê cremoso, carne de primeiríssima qualidade, salada fresca, toda família sentada na grande mesa de jantar… Que saudade daquele tempo! Ah! Isto é que é vida: um jantar de verdade! Hum… Comida boa em um local magnífico: talheres de prata, louça importada do século passado, cristais reluzentes, tudo muito luxuoso, toalhas de renda, guardanapos de puro linho engomados, cortinas suntuosas, cadeiras aveludadas, música clássica, convidados elegantemente trajados, impecáveis…
- Não se esqueça: à luz de velas!
- Bravo, meu caro! Luz de velas, um cálice de vinho… Um brinde! Ah! Que delícia! Hum… Que sabor! Não existe nada mais saboroso em todo o mundo. E ainda por cima num ambiente tão agradável como este, com uma linda vista, a natureza ao redor… Sinto-me como um verdadeiro rei!
- Xiiii… A coisa parece mais séria do que eu imaginava…
- Silêncio, cavalheiro! Ainda não terminei meu maravilhoso jantar; não me aborreça, sim?! Hum… Hum… Hum… Deixe-me ver o que temos aqui… Hummmmm… Que beleza! Minha sobremesa favorita! Parece que nossos anfitriões adivinharam o quanto eu adoro uma boa salada de frutas. Novamente, recordo-me… Que saudade de mamãe! Salada de frutas era sua especialidade. Lembro-me como se fosse hoje: "Você não é capaz de adivinhar o que eu fiz para o meu garoto!". Ah, eu já sabia: uma bela salada de frutas feita com todo carinho por suas mãos de fada… Mas, lembranças à parte, vamos provar essa maravilha. Hum… Deliciosa! Estupenda! Ai, ai… Sinto-me satisfeito! E feliz, sobretudo! Isto é o que se pode chamar de um jantar magnífico para um homem magnífico!
- Homem magnífico, um mequetrefe feito você?! Era só o que me faltava! Você só pode estar brincando… Como você pode chamar essa droga de comida fria, queimada e requentada de jantar magnífico?!
- Vou ignorar esse seu comentário inconveniente…
- Arroz empapado, feijão duro como pedra, batata amassada, verdura murcha, mísero pedaço de carne de terceira sem gosto…
- Não insulte nosso jantar! É muita deselegância de sua parte, meu caro!
- E tem coragem de chamar essa água suja de vinho?! E aquele selvagem de nobre rapaz?! E chama a tal banana passada de salada de frutas?! Só na sua cabeça! Onde já se viu uma marmita toda amassada e furada ser chamada de louça importada do século passado!? Ora, faça-me o favor!
- Hã-ham… Você não está sendo nada gentil, cavalheiro…
- Cavalheiro?! Um assaltante de bancos feito eu?! É muita cara-de-pau sua chamar essa cela fedorenta de ambiente tão agradável! Acho que esses dez anos de cadeia fizeram muito mal a você…
- Você é um chato!
- E você é um maluco! Você precisa urgentemente de um…
- Psiu! Eu preciso de um bom café para terminar de forma brilhante este meu jantar esplêndido!
- Se continuar assim, vai acabar tendo que usar uma camisa-de-força!
- Que tal você usar um pouco a sua marmita de pensamentos?! Não percebe a nobreza deste momento fantástico?
- Não resta dúvidas: você precisa de um médico!
- É você quem precisa apenas de um pouco de imaginação, cavalheiro…

sexta-feira, 4 de março de 2011

Assim é a vida...

Depois de morto

No velório...
- Ai, ai... Como são as coisas, não? Outro dia mesmo estava vivo... Tão jovem...
- Que jovem, o quê?! Tinha mais de oitenta anos!
- Você fala como se fosse muito. Ai, ai... Como é possível a morte chegar assim tão de repente...
- De repente?! Ele já estava doente havia pelo menos dois anos!
- Ai, ai... Um morto com uma aparência tão saudável...
- Você só pode estar brincando! A doença acabou com ele; nunca vi um defunto tão esquelético. Veja só: pele e osso.
- Pobre homem...
- Pobre, uma ova! Morreu rasgando dinheiro de tanto que tinha!
- Como ficará a família agora? Que perda terrível! Sinto tanta pena...
- Que nada! Você deveria sentir pena de nós! A mulher e os filhos não viam a hora de ele bater as botas só pra botarem as mãos na fortuna do velho. Dá pra ver na cara deles; estão disfarçando pra não caírem na gargalhada. Acham que o dito foi tarde demais!
- Verdade?
- Juro por esses olhos que a terra há de comer!
- Ai... Que tristeza! O cabra desencarnou e nós perdemos um grande amigo...
- Grande amigo?! Só se for seu grande amigo! Pra mim ele devia uma grana preta! Aquele sovina de uma figa!
- Que coincidência! Morreu sem me pagar também...
- E com todo dinheiro que tinha! Pão-duro! Safado! Antes de enriquecer, precisava da gente pra tudo...
- Calma... O homem acabou de passar desta pra melhor... Respeite o cadáver do coitado.
- Coitado?! Sei... Depois de morto todo mundo vira santo!
- Você acha que ele vai pro céu então?
- Só se o inferno mudou de nome e ninguém me avisou!
- De conversa ele era bom; você não pode negar.
- Bom de passar conversa nos outros, isso sim!
- Era um grande homem...
- Tá louco?! Esse nanico?!
- Quero dizer que era um bom sujeito.
- Bom sujeito?! Um assaltante de bancos do calibre dele?!
- Pelo menos, numa coisa você tem que concordar comigo: ele era um bom ladrão de bancos!
- Ah, isso eu sou obrigado a reconhecer; um bom ladrão ele era! O melhor que eu já conheci!
- O melhor! Bom, mas bom mesmo!
- Muito bom!
- Bom demais!
- Um viva para ele!
- Viva!
- Ai, ai...
- Ai, ai... Como era bom!
- Bom...
- Vou sentir falta dele.
- Ai... Eu também...
- Que descanse em paz!
- Amém!

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Razanique e o livro de magia - III Capítulo

Capítulo III

A sala do mestre



Micogito empurrou lentamente a porta da grande biblioteca. Mais ao fundo, sentado atrás de uma pilha de livros, bem à vontade, o senhor Gronfo apenas ergueu os olhos por cima dos óculos e sorriu sem mostrar nenhum dente.
— Finalmente, finalmente, finalmente! — ele disse, enquanto descruzava os pés retirando-os de cima da mesa; fez um gesto com uma das mãos convidando-o a entrar.
O pequeno razani deu um longo suspiro, tomou coragem e entrou.
— Com licença, senhor inspetor...
O velho levantou-se sem dizer nada, caminhou em direção ao menino e estendeu sua enorme mão na direção dele. Micogito pareceu não entender o que ele queria.
— Vamos! O livro, o livro, o livro! — esbravejou secamente. — Entregue-me agora!
— E-eu não posso... — respondeu tremendo.
O inspetor arregalou os olhos, furioso.
— O quê? O quê? O quê?
— Eu não posso, senhor Gronfo. A-acabei de deixá-lo com o professor Uioio — mentiu sem saber o motivo.
O velho franziu a testa e pareceu não acreditar em Micogito.
— Aquele intrometido! — falou consigo próprio, pensou por alguns segundos e enfim decidiu-se:
— Siga-me! Primeiro você terá o que merece, o que merece, o que merece, depois... He, he, he...
Ele caminhou em direção às centenas de prateleiras. Micogito o seguiu; passou pela mesa na qual o encontrara e estranhou tamanha bagunça.
No silêncio da biblioteca, as únicas coisas que se ouviam eram os passos do inspetor e do menino e o tilintar das chaves na cintura do velho. Passaram por muitas estantes repletas de livros de todas as cores e tamanhos. Ao chegarem à última delas, que ficava encostada na parede do fundo, o senhor Gronfo parou, virou a cabeça para trás, olhou o garoto e sorriu novamente. Depois puxou um livro velho e muito grande — o maior que Micogito já vira — que estava na prateleira mais baixa. No mesmo instante, a pesada estante começou a se mover lentamente para o lado, fazendo surgir um longo corredor escuro.
Micogito observava tudo praticamente sem respirar, estava nervoso com a situação. Quando a estante parou, o inspetor imediatamente entrou na escuridão da bungara mitiaca e ele se viu obrigado a acompanhá-lo. À medida que andavam, chamas azuis iam se acendendo sozinhas nas paredes de pedras cinzentas; depois que os dois passavam por elas, apagavam-se imediatamente. O caminho era estreito, com algumas curvas, e em declive, tinha uma temperatura bem agradável e um delicioso aroma de bolo saído do forno. Apesar da sensação boa, o menino não parecia nada animado, a cada passo sentia um frio no estômago; sempre fora um bom aluno e aquela era a primeira vez que fora “convidado a visitar” a sala do grande mestre. O que sabia a respeito daquele lugar era apenas de “ouvir falar”, ao contrário de alunos mais travessos e indisciplinados que conheciam aquilo tudo de cor, até mesmo de olhos fechados.
De repente, o velho parou. A sua frente uma imensa porta se iluminou. Micogito pôde ler o que estava escrito entalhado na madeira: “Grasquim Vontergrize, grande mestre e diretor da Escola Preparatória de Magos de Razanique”. O Gronfo mais uma vez virou-se e sorriu — parecia estar muito satisfeito com tudo aquilo; em seguida, segurou uma grande argola de bronze que surgira do nada bem no meio da porta e a bateu com força na madeira várias vezes.
Num passe de mágica a porta desapareceu deixando à mostra a sala do grande mestre. Era um lugar fantástico, impossível de ser descrito ou imaginado, tudo brilhava intensamente e podia se notar magia em cada detalhe. Inexplicavelmente o sol parecia brilhar lá dentro, havia belos pássaros, muitas flores coloridas e algumas plumas flutuando no ar. Ruídos de água e ventos soavam como uma música suave. O ar era fresco e o perfume das flores se espalhava pelo lugar. Micogito arregalou os olhos o mais que podia quando viu Grasquim sentado junto a sua mesa oval. O velho mago de cabelos e barbas dourados que iam quase até o chão estava com a aparência serena de sempre. Tinha um sorriso bastante amigável e seus grandes olhos amarelos como ouro brilhavam e estavam fixos no pequeno garoto, que não piscava, tampouco se movia. Atrás do mago uma parede alta de pedras azuladas reluzia como se estivesse cravejada de diamantes.
Grasquim fez um discreto sinal com a cabeça pedindo que entrassem. Imediatamente o inspetor Gronfo obedeceu, cumprimentou seu mestre abaixando respeitosamente a cabeça e quando olhou para os lados não encontrou Micogito. Virou-se para trás e achou-o parado no mesmo lugar; com um rápido puxão, tratou de trazê-lo para dentro da sala. A porta reapareceu em seu lugar enquanto o menino — boquiaberto — movia os olhos para cada canto, fascinado com a beleza do local. O silêncio foi enfim quebrado pelo velho mestre:
— Gronfo — chamou com a voz rouca e grossa.
— Sim, sim, sim! — apresentou-se prontamente o inspetor cheio de si.
— Com tanta força, na porta, não deve bater.
O senhor Gronfo corou e não conseguiu disfarçar seu embaraço; nem poderia, pois torcera o nariz e aquele era um nariz grande demais para passar despercebido.
Micogito sorriu consigo, agora muito mais calmo.
— Afastar-se é o que vai fazer — ordenou o mestre Grasquim ao inspetor. Depois se dirigiu ao menino com a voz suave: — Até aqui, sem medo, deve vir.
O velho Gronfo saiu para o lado com cara de tacho, enquanto Micogito aproximava-se da mesa do mestre ainda meio receoso.
Grasquim coçou a barba com os olhos grudados no menino, como não dizia nada, Micogito precisava falar...
— Si-sinto muito, diretor — disse com a voz embargada e a cabeça baixa. Quase não pôde ser ouvido.
— Que sente, eu sei.
— Eu não deveria ter voado, mas estava atrasado para a aula da professora Vasda. Foi sem querer. Estou aqui para receber o meu castigo, seja qual for.
— Castigo... — sussurrou o mago.
O inspetor esboçou um sorriso.
— Sim, mestre, errei e por isso mereço um castigo.
— Castigo... — sussurrou novamente enquanto batia levemente os dedos na mesa como se pensasse no que fazer.
O senhor Gronfo quase não conseguia mais se conter, estava eufórico com todo aquele suspense, tinha muitas sugestões para dar, bastaria apenas que Grasquim lhe desse uma única chance de falar. Mas o grande mago sabia exatamente o que fazer.
— Castigo algum você receberá — sentenciou.
Ao ouvir aquilo, o inspetor quase enlouqueceu, abriu muito os olhos, inconformado, cerrou os punhos e mordeu a língua para não protestar. Estava atônito. Micogito, por sua vez, nem acreditou no que ouvira, também se mostrou surpreso, achando que entendera errado.
O mestre Grasquim levantou-se calmamente, deixando aparecer sua longa veste branca cintilante. De maneira solene, estendeu a mão comprida e enrugada para o menino, em seu polegar havia um grande anel dourado com cinco pedras vermelhas.
— A mim, deve entregá-lo, agora.
Micogito sentiu um nó na garganta. Pensou em argumentar, se fazer de desentendido, mas sabia muito bem o que o mestre queria: o livro de magia de seu pai.
Ficaram parados por um instante. Apenas os olhos do Gronfo se moviam velozes mirando ora o menino, ora o velho mago, ora o peleco, ora o velho nablim.
Mesmo contra sua vontade, ele puxou o pequeno livro de dentro da manga da blusa. O senhor inspetor arregalou ainda mais os olhos agora fixos no grande tesouro de Micogito. Encarou o garoto com um olhar raivoso acusando-o de mentiroso.
O menino pareceu estar triste, fechou os olhos com força, deu um suspiro profundo e só então entregou o livro de nablia ao seu mestre.
— Paciente é o que deve ser. Só deverá lê-lo quando mago se tornar — ele disse ao menino que apenas abaixou a cabeça. — Bem guardado seu livro ficará no cofre secreto. Seu, muito em breve, será.
— Mas tenho só dez anos — respondeu num impulso.
O mestre sorriu. Sabia que, para o garoto, ainda faltava muito tempo. Aos quinze, quando completasse os estudos na Escola Preparatória, se tornaria um mago de verdade e receberia então, das mãos do mestre, um livro de magia igual àquele.
— Adequado é o tempo, se bem aproveitado ele é — disse com a voz serena; costumava falar pouco e nem por isso deixava de ser compreendido por quem quer que fosse.
Micogito entendeu que não deveria ter pressa de crescer. Ainda era apenas um menino e deveria agir como tal. Balançou a cabeça aceitando as sábias palavras do velho Grasquim.
— Ao lugar dele, deverá levá-lo — ordenou entregando o livro de magia ao inspetor Gronfo.
— Sim, sim, sim, badu! — respondeu com entusiasmo. Segurou-o com as duas mãos. O livro de magia se iluminou e tornou-se muito pesado forçando o homem a dobrar-se para frente, depois voltou ao normal.
O mestre franziu a testa e manteve os olhos grudados no inspetor como se o repreendesse por toda aquela euforia demonstrada.
— Vamos, garoto, garoto, garoto! Já tomou muito tempo, muito tempo, muito tempo do diretor.
Micogito obedeceu prontamente e virou-se para sair. Deu alguns passos e parou. Gronfo tratou de empurrá-lo:
 — Vamos! Andando, andando, andando...
— Gronfo!
O inspetor estremeceu:
— Si-sim, mestre, mestre, mestre?
Grasquim fez sinal para que ele se afastasse. Olhou diretamente para Micogito e falou:
— O que quer perguntar, perguntar você deve.
O garoto ficou admirado, pois realmente tinha algo que queria muito saber. Aproximou-se do mestre novamente e perguntou com a voz muito baixa:
— Alguma novidade sobre o meu pai?
O velho Grasquim balançou a cabeça negativamente.
— Paciente é o que deve ser. Achado será aquilo que vive.
— Agora vamos, vamos, vamos! — puxou-o o Gronfo.
O mago manteve os olhos fixos no menino e no inspetor enquanto se afastavam. Tinha agora as sobrancelhas bem em pé, demonstrando grande preocupação.
— Ande mais depressa! — ordenou com impaciência o velho Gronfo, empurrando Micogito. — Vamos logo! Vamos!
Sem dizer nada, o garoto apenas apressou seus passos, apesar de já estar perdendo a paciência com o inspetor. Sabia que ele não gostava dos alunos, mas nunca o vira com tanto mau-humor e, muito menos, tão mal-educado. Logo chegaram à biblioteca. Assim que passaram pela estante, o Gronfo deu-lhe um forte empurrão.
— Saia da minha frente!
Em passos acelerados, o velho dirigiu-se até a porta. Parecia ter muita pressa. Abriu-a com violência e de repente parou, virou-se para Micogito, sorriu com malícia, levantou o livro de magia para o alto e o balançou. Tinha um olhar diferente, medonho, assustador.
— Você o quer?
Micogito franziu a testa sem entender nada.
— Rá, rá, rá! — riu com grande ironia. — Finalmente é meu e não lhe dou! — completou em tom de galhofa antes de virar-se e sair batendo a porta com força.
O menino rapidamente correu até a porta, abriu-a, mas não viu ninguém, o senhor Gronfo já havia desaparecido. Por um momento ele sentiu uma grande raiva do inspetor, ou melhor, do comportamento dele. Como é que ele conseguia ser tão desagradável? Permaneceu ali parado pensando para onde ele poderia ter ido. A montola era cheia de salas secretas que somente Grasquim e o Gronfo sabiam onde ficavam e como fazer para  chegar até elas. E tudo que o menino queria descobrir naquela hora era onde seria o tal cofre secreto onde o inspetor guardaria o seu grande tesouro, o livro de magia que pertencera ao seu pai. Só tornaria a ver um livro como aquele no dia em que se tornasse um verdadeiro mago.
Fechou os olhos e disse baixinho para si mesmo: “Se eu pudesse encontrar o meu pai...”

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Sonhos

Há sonhos que viram inspiração...
Sonhamos enquanto dormimos:
Sonhos lindos e sonhos tristes;
Sonhos bons e sonhos ruins.
Sonhamos acordados:
Sonhos de conquistas, sonhos de felicidade,
Sonhos de esperança, sonhos em todas as idades,
Sonhos simples, sonhos difíceis...
Quando sonhamos acordados,
Sonhamos que estes sonhos se tornem realidade;
E se sonhamos com amor,
Certamente eles se tornam reais.
Vamos sonhar?!

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Pais e filhos...

A quem puxar

-  Assim não dá! Tenha dó! Onde já se viu?! Será possível que você não vai ter juízo nunca?! Seu inútil! Pensa que vai longe desse jeito? Pois saiba que se continuar assim você não vai ser ninguém na vida! Seu preguiçoso! O que você quer, hem? Viver nessa boa-vida para sempre, é? Pois saiba que um dia essa mordomia vai acabar! Não vou sustentar vagabundo pelo resto da vida, ouviu bem?
-  Nem...
-  E fale direito com o seu pai! Será possível que eu não mando mais nessa casa?
-  Nem...
-  Assim vamos mal, muito mal... Veja só essas notas! Não tem vergonha? Não quer estudar, não quer trabalhar, não quer nada com nada... Pensa que a vida é fácil, não é? Pois está redondamente enganado, mocinho! Se não estudar, não vai a lugar nenhum! Pensa que cheguei aonde cheguei por causa dos meus belos olhos azuis, pensa?
-  Nem...
-  Pois saiba que dei duro desde cedo! Comigo não teve esta moleza toda, não... Na sua idade, eu trabalhava de dia e estudava à noite! E ai de mim se reclamasse! Meu pai me enchia de pancada! E era isso que eu deveria fazer com você!
-  Nem...
-  E preste atenção quando eu falo! Onde é que eu estava mesmo... Ah! Fique sabendo que a minha paciência com você se esgotou! Você já tem dezoito anos, está mais do que na hora de crescer, se tornar um homem de verdade. Para isso tem que levar os estudos a sério. Veja o meu exemplo! Sou um homem esforçado, trabalhador... Pensa que consegui meu cargo dentro da empresa graças aos meus belos olhos azuis? E esta casa, o carro, o sítio, as cabeças de gado, o plano de saúde... Garanto que nada disso me foi dado de graça só por causa...
-  Dos seus belos olhos azuis...
-  Isso mesmo! Você deveria se orgulhar do seu pai! Deveria seguir os meus passos! Não é possível que você não tenha puxado a mim!
-  Sou mentiroso como você!
-  Como é que é?
-  Você vive dizendo que eu só minto.
-  E quem falou que eu sou mentiroso?
-  Você não tem olhos azuis, velho...
-  O quê?!?!
-  Nunca se olhou no espelho, não?
- Muito bem! Nesse caso, já que eu não tenho olhos azuis, a partir de hoje, você não tem mais mesada!